quarta-feira, 20 de maio de 2009

Nos braços de Ícaro


Foto: Wikipedia
Lockheed Super Costellation
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Nos braços de Ícaro

Paulo Heuser


Humboldt Galifante não gosta mais de viajar de avião. Foi-se o encanto e o glamour. Mas, viajar é preciso, quando se é o último perito em carimbos do mundo. Ao embarcar, ele descobre que algum computador o jogou na poltrona 14F. Chegar lá, até que não é tão difícil. Difícil mesmo é passar sobre os ocupantes das poltronas 14D e E, que insistem em permanecer sentados. Ajeita daqui, pisa dali, e ele alcança a 14F. Sucesso, em parte, pois chega a hora de afivelar o cinto de segurança. Estranho, o cinto tem duas fivelas idênticas, como aquelas tiras internas das malas. Ele sempre lhes dá nó, pois nunca conseguiu entender o mecanismo. Na dúvida tentou fazer o mesmo com o cinto. Em vão. Não há comprimento suficiente para dar o nó, nem para um mísero nó cego. Salvo pela chegada de uma bela mocinha que se sentou na 14G. Ela anda pelos 20 e pouco e veste-se de acordo com a estranha moda em vigor. Umbigo de fora, adornado por uma peça de metal. Ela cantarola uma curiosa música em alemão, que deve estar lhe chegando aos ouvidos através dos fones de um pequeno aparelho que carrega no bolso. Ela mostra a Humboldt que ele pegou metade do seu cinto de segurança. Desatado o quase nó, resta apreciar um pouco do vôo. Pena que seus joelhos estejam prensados dolorosamente contra o encosto da poltrona da frente. A poltrona estreita faz com que ele encoste nos passageiros da 14E e da 14G. O calor aumenta, e ele despe o impecável paletó marrom. Voará vestindo o colete de frente marrom e costas cor de vinho. Retirar uma peça de roupa naquele aperto não é fácil. O pessoal ao lado tem de colaborar. Chega o jantar, finalmente, exatamente ao gosto de Humboldt. Servem-lhe água morna e café com leite em pó. Basta misturá-los. A bolacha é meio estranha, parece uma barra cheia de caroços. O sono chega após o jantar. Em segundos, ele está dormindo. Vez por outra, acorda momentaneamente e ouve o ronco monótono das turbinas. Humboldt dorme nos braços de Ícaro.
Lucinda adora viajar. Ela curte aquele caos dos aeroportos. Viaja por prazer, já que trabalha a distância, através do notebook, MSN e seja lá o que a tecnologia traz. Ela entra no avião e vai até a poltrona 14G, através do corredor esquerdo, pois viajante experiente sabe que ele está mais vazio. Ao lá chegar, observa uma cena curiosa. Um sujeito que lembra o Hercule Poirot tenta acessar a 14F através da 14D, que está ocupada. O homem veste um antiquado terno marrom de funcionário público e carrega uma antológica pasta tipo 007 que parece feita de couro de crocodilo. Se isso não bastasse, o clone do Hercule Poirot pega partes do cinto de segurança de poltronas diferentes e tenta uni-las. Lú guarda sua bagagem de mão e sugere que o vizinho de poltrona pegue as duas pontas do cinto da sua própria poltrona. O homem cheira a Paco Rabanne do Paraguai. Com medo de que ele puxe conversa, ela põe os fones do seu ipod e ouve 99 Luftballon. Só falta o homem puxar de um relógio de bolso, daqueles com correntinha prateada. E o faz. Quando tudo parecia calmo, apesar do evidente desconforto do Hercule Poirot tupiniquim, pelo pouco espaço para as suas pernas, ela vê que ele transpira em bicas. Pudera, só um idiota iniciaria um vôo com tal indumentária. O idiota resolve despir o paletó, empurrando todo o mundo. A comissária com sorriso de tripulante de avião vem trazer o lanche. O clone do Hercule pede bolachas e café com leite morno. A comissária lhe joga uma barra de cereais de goiaba com cristais de menta e um sache de café com leite. Passa-lhe uma xícara de plástico com água morna. Ela observa o infeliz empapar a barra de cereais naquilo. Lú passa o lanche e tenta dormir. Em vão, pois o infeliz Hercule ronca como turbina fora de giro. Ela aumenta o volume do ipod. Vez por outra, ela sente a cabeça dele encostando no seu ombro. Uma cotovelada resolve, por alguns momentos, e volta o ronco com som de turbina. Lucinda vive o pesadelo de Ícaro.